Um conto salgado

Quando ela atravessou a rua em frente a loja de brinquedos, parou de súbito entre as duas vias. O trânsito estava como de costume naquela época do ano. O fluxo de carros e de pedestres era intenso. Olhou para a vitrine da loja, o mesmo "Papai Noel" do ano passado se balançava, enquanto tocava mecanicamente um saxofone. Lá dentro, o movimento era de tirar o ânimo de qualquer um. Filas imensas nos caixas e nos balcões de pacotes da loja. Crianças tirando brinquedos das prateleiras, os vendedores alucinados, de um lado a outro, mais preocupados com suas comissões das
vendas de fim de ano.
-Ei, sua maluca! -Sai daí!- Quer morrer?
Elen então percebeu onde estava...Os carros tiravam fina, pasando rente ao corpo dela...As buzinas insistiam. Correu para o meio fio e se prostou na calçada com as mãos nos joelhos, puxando com força o ar dos pulmões. Mudara de cor, estava pálida...os lábios pareciam pétalas transparentes. saiu andando sem escolher a direção. Ao longe, via- se os cabelos balançando no ar e a estampa do vestido, que parecia mudar de lugar no tecido, conforme caminhava. Lógo chegou á praça que ficava uma quadra depois de sua casa. Sentou-se desajeitadamente, encostou a cabeça na parte de cima do banco de cimento e fechou os olhos. Ficou ali parada, sem se mover. Pingos de chuva começaram a cair sobre seu rosto. As pessoas na praça, já corriam em busca de abrigo, mas ela não se moveu. continuou lá, inerte...imóvel e de olhos fechados.

Elen demorou seis anos para engravidar, já havia perdido as esperanças depois de tantos tratamentos, até que recebeu a notícia de que finalmente, seria mãe. Ficou radiante com a notícia e preparou tudo antecipadamente. Aos seis meses de gestação, já havia comprado todo o enxoval do bebê e preparara o quarto, tomando o cuidado com as cores, pois não queria saber o sexo da criança antes do nascimento. Deu a luz a uma garotinha linda, que logo se encheu de cachinhos e de sardas.
Evelin era inteligente. Aprendeu a falar rapidamente e era a rainha das perguntas, mas o que mais lhe encucava era "como é que faz chuva"? Perguntava isso a qualquer um que lhe desse conversa e cada versão que lhe davam, ela torcia o rosto, insatisfeita. Acabava aceitando, porque todas as versões se pareciam no geral.
Evelin dormia sozinha desde os dois anos, mas antes de dormir, sempre ia ao quarto de Elen e dizia:
- Eu já vou dormir, mamãe. E vou descobrir no meu sonho hoje, como se faz chuva...boa noite papai!- Boa noite, mamãe!- Amanhã eu venho contar como faz a chuva,tá?
E assim beijava os pais e ia dormir..e assim foi, durante alguns anos.
Evelin tinha coleção de guarda- chuvas. Quando completou quatro anos, Elen lhe deu um lindo guarda- chuvas com bonequinhas penduradas nos bicos, mas ela ainda queria mais um. O que estava na loja de brinquedos do bairro. Era cheio de bolinhas de natal e a bolinha do centro, na pontinha do guarda- chuva, acendia e ficava piscando...ela queria aquele. Fora seu único pedido de Natal.

-Vamos, mamãe! Eu quero chegar logo na loja.
-Será que tem mais?- Será que só tem aquele?- Será que já compraram? E se não tiver mais?
-Calma,Evi...calma! - Nós já estamos indo. E acho que a loja não iria querer vender só um, não é?
-Deixa de agonia, menina!
As duas sairam felizes em direção a loja.Ao chegarem em frente, do lado de oposto, pararam e esperaram o semáforo abrir. Evelin não tirava os olhos da loja, buscava já com os olhinhos apertados e aguçados, seu guarda- chuva de bolinhas, pois uma amostra ficava com uma "Mamãe Noel" do lado de dentro da vitrine...Evelin o avistou de longe.
- Olha, mamãe...É ele!- vamos, vamos...anda!
E Evelin soltou-se da mão de Elen...de repente, um grito e logo, uma batida seca no chão.
-Meu Deus! Gritou Elen, levando as mãos á cabeça.
Um carro de entregas do correio, cortou por fora , tentando ultrapasar o que já estava parando no semáforo e a acertou em cheio.
O sangue fizera um desenho estranho com os cabelos de Evelin no chão...o sol, refletia sobre seu corpo e as sombras a copiavam de um lado. Elen correu até ela e outras pessoas já rodeavam o corpo.
-Evi...fala comigo! - Pelo amor de Deus...fala comigo!
Evelin, num esforço sobrehumano, virou-se de lado e olhou para a mãe...escorria-lhe sangue pela boca, tinha uns espasmos...tentou falar algo. Elen não entendeu...tentou de novo...
-O...de...bo...bo...linha, mã...m
Foi-se. Mas Elen ainda não sabia. continuou lá...desfaleceu, acordou na sala de emergência do hospital...e soube que perdera sua menina.

-Moça!- Moça...ei! - Você está chorando?
Elen ergueu a cabeça, abriu os olhos e se deparou com um garotinho á sua frente.
-Você está toda molhada...por que não se escondeu da chuva? - Você ficou aí o tempo todo?- Pegou toda aquela chuva? - Você vai ficar doente. Minha mãe falou que se a gente tomar chuva, fica doente e tem que tomar injeção.
- Oi...eu estou bem. Não vou ficar doente não.Não mais do que já estou.
-Tá bom...se é assim...eu já vou.
Elen fê-lhe um afago nos cabelos, deu um sorriso triste e saiu.
Enquanto caminhava de volta, pensava:
"Sim...eu sei como se faz chuva." Tenho uma no meu rosto agora e tenho várias dentro de mim, porém, são algadas.
Secou com as costas das mãos as lágrimas e abriu o guarda- chuva. saiu com a luzinha acesa e já nem chovia mais. Ela não ia se desfazer do guarda- chuva, assim como não poderia evitar o primeiro natal sem Evi...

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